Vaguear.
Caminhar, correr, andar...
Buscar sem saber bem o quê, sabendo que é mesmo isso que se quer encontrar.
Ouvir... escutar, guardar, e calar.
Deixar-se levar pelo vento, por vezes bem forte; outras vezes quase sem se sentir. Vento que abala, ou simplesmente embala.
Seguir por caminhos desconhecidos, por vezes entediantes, outras vezes emocionantes; ou seguir por caminhos conhecidos, muitas vezes entediantes, muitas vezes impostos, outras vezes seguros e pacificadores.
Dar, outras vezes receber. Esgotar-se e esgotar... cansar, cair, parar. Perder-se do seguimento da viagem... e novamente seguir, correr, encontrar.
Sempre, em ciclos mais ou menos regulares.
Girar, desconhecendo os detalhes da rota, apanhando bagagens perdidas noutras voltas e largando outras. Olhar em frente, ver o fim, outras vezes o princípio.
Tudo é relativo, tudo é incerto. No entanto, tudo se repete de forma irrepetível. Cada ser a seu modo; cada coisa a sua forma; cada processo o seu procedimento; cada gesto a sua definição.
E no fim, no fim de tudo, todos iguais.
Rio Gêba, Bafatá, GB
Por estes dias fez 5 meses que cheguei à Guiné... exactamente os mesmo 5 meses desde que saí de casa...
Sair de casa não significa apenas deixar o espaço físico em que vivemos... Quando se sai de casa, perde-se toda a segurança do lar, da família, dos amigos, da rotina e de todo um sistema a que estamos habituados. E, se o fazemos, e' porque somos loucos ou então porque temos fortes motivos para o fazer. Ficar longe de casa significa ficar longe de tudo o que nos da' a confiança de que necessitamos para viver o nosso dia a dia.
Assim, quando se parte para longe, parte-se com um objectivo… com motivações… com expectativas… criamos imagens, situações, idealizamos um sonho de vida, apesar de termos plena consciência de que não será' fácil.
Temos tendência a dizer que partimos de coração aberto, que acolheremos tudo o que recebermos em termos de cultura, atitudes, maneiras de ser, de fazer, de estar e de agir… não e verdade! Quando chegamos, apercebemo-nos da grande quantidade de expectativas que criámos, de tudo o que idealizámos… e prova disso, são as frustrações que muitas vezes temos por aquilo que vivemos não coincidir com aquilo que imaginámos viver ou que quereríamos viver…
Por outro lado, não adianta dizer que sabemos que não será' fácil, pois não imaginamos o quão difícil poderá' ser…
Quando dizemos que sabemos que teremos momentos difíceis, em que pensamos afinal? Nas saudades? Na frustração de vermos que o nosso trabalho não tem resultados imediatos? Sim, tudo isso acontece… mas não são os momentos piores.
Com as saudades aprendemos a lidar desde que nascemos… e a frustração de não ver resultados, acaba por ser compensada pelos “resultados” que vemos noutros campos: nas relações com as pessoas, na partilha que vivemos… o pior são os outros problemas… que podem surgir por mil e uma razoes, e com que nem sequer sonhamos.
No fim de contas, são problemas semelhantes aos que temos por casa, e talvez por isso se tornem tão negativos e tão frustrantes – e' que quando partimos, achamos que deixaremos os nossos defeitos em casa, achamos que seremos perfeitos a viver num mundo perfeito… mas, surpresa das surpresas, toda a nossa personalidade vai connosco, todos os nossos defeitos nos perseguirão e nos trarão muitas complicações.
Mas deixemo-nos das coisas menos boas… se tudo isto e' negativo, também tudo isto provoca em nos algo muito positivo: trata-se de um profundo trabalho de auto controlo, auto conhecimento; de aprendermos a estar sos com o nosso eu, a reflectir e a meditar… e a ter muita, muita paciencia.
Todas estas dificuldades nos levam a limar algumas das nossas arestas, coisa que nunca fariamos na proteccao das nossas “casas”… de facto, temos que amadurecer muito, aprender a ter calma, a respeitar o tempo e o espaco das pessoas – mesmo que muitas vezes não coincida ou que entre em choque com o nosso.
E depois, ha' todo um conjunto de diferencas a contemplar em tudo o que nos rodeia... o que podemos aprender e' infinito... e belo! Ha' momentos unicos, que so podemos ter “longe de casa”...
Muita gente fala no “espirito africano” que contagia e cativa qualquer pessoa que o sinta – confirma-se. E' algo que não tem explicacao, que se sente no ar, nos cheiros, nos ritmos, nos rituais, nos sorrisos e nas paisagens... algo que inunda todo o nosso ser e nos faz sentir bem e querer fazer parte de tudo isso que nos rodeia.
Temos tendência a habituarmo-nos de tal forma ao que nos rodeia, que fazemos deste o nosso c. Por vezes e' preciso parar para olhar... para sentir...
Aprendemos muitas coisas longe de casa, desprotegidos – aprendemos outras formas de viver, de sentir, de pensar... e aprendemos principalmente a questionar e a relativizar... aprendemos a dar valor a coisas que antes punhamos de parte... e aprendemos a viver a solidao...
No fim de contas, e' como se nascessemos outra vez... somos como criancas a descobrir o mundo que nos rodeia... uns dias rimos com as surpresas, outros dias choramos com as quedas ou os medos... mas o que importa e' que, aos poucos... vamos crescendo...
21 de Junho de 2008
não tenho aparecido por aqui... a minha vida tem andado a mil à hora...
estou a concretizar um projecto muito desejado... aliás, estou a tratar dos últimos preparativos para esse projecto...
um projecto de voluntariado... de um ano... na guiné-bissau...
são curiosos os inúmeros pensamentos que nos ocorrem quando nos vemos a deixar tudo para trás... a renunciar à nossa cómoda vida (já cheia de imprevistos) para vivermos um ano de incertezas sobre tudo e que nos abrirão as portas para um resto de vida também muito incerto...
mas que fazer quando a própria incerteza nos fascina?
lindo... lindo viver, trabalhar, conviver sem interesse... sem pensar no que vamos receber, se estamos a trabalhar mais do que a hora, se estamos a ser bem pagos ou não... poder dar mais de nós, sem que isso implique uma "obrigação", mas sim um "compromisso"...
loucura? talvez... em tempo de crise, de desemprego, de "apertar o cinto", deixar um emprego estável, uma vida minimamente organizada e adequada às responsabilidades, um nível de independência bastante bom... para ir para o meio do nada, com nada e, à primeira vista, para nada...
sem dúvida que comparando com aquilo que tenho, por pouco que seja, vou mesmo para o meio do nada... por outro lado, qualquer coisa que vá fazer, por muito que seja, significará praticamente nada, relativamente ao monstro de necessidades que existem...
então porquê? porquê? sinceramente, também não sei explicar muito bem... sei apenas que é o que quero, e que reflecti bastante sobre isso... também sei que medos e dúvidas acompanhar-me-ão, pelo menos, até ao dia da partida... ou, quem sabe, até ao dia do regresso...
mas, se reflectirmos um pouco mais ainda, medos e dúvidas acompanham-nos desde o dia em que nascemos... até ao dia de hoje...
talvez num amanhã, muito distante, nos venham as certezas... não sei. Sei que até hoje, tive algumas, mas poucas... enquanto que as dúvidas foram sempre surgindo... e, sinceramente, desejo que continuem a surgir.
venham as dúvidas, os medos, a Guiné-Bissau e o resto da vida... e cá estarei para ver o que acontece e fazer o que for preciso.
"De súbito sabemos que é já tarde.
Quando a luz se faz outra, quando os ramos da árvore que somos soltam folhas e o sangue que tínhamos não arde como ardia, sabemos que viemos e que vamos. Que não será aqui a nossa festa.
De súbito chegamos a saber que andávamos sozinhos. De súbito vemos sem sombra alguma que não existe aquilo em que nos apoiávamos. A solidão deixou de ser um nome apenas. Tocamo-la, empurra-nos e agride-nos. Dói. Dói tanto! E parece-nos que há um mundo inteiro a gritar de dor, e que à nossa volta quase todos sofrem e são sós.
Temos de ter, necessariamente, uma alma. Se não, onde se alojaria este frio que não está no corpo?
Rimos e sabemos que não é verdade. Falamos e sabemos que não somos nós quem fala. Já não acreditamos naquilo que todos dizem. Os jornais caem-nos das mãos. Sabemos que aquilo que todos fazem conduz ao vazio que todos têm.
Poderíamos continuar adormecidos, distraídos, entretidos. Como os outros. Mas naquele momento vemos com clareza que tudo terá de ser diferente. Que teremos de fazer qualquer coisa semelhante a levantarmo-nos de um charco. Qualquer coisa como empreender uma viagem até ao castelo distante onde temos uma herança de nobreza a receber.
O tempo que nos resta é de aventura. E temos de andar depressa. Não sabemos se esse tempo que ainda temos é bastante.
E de súbito descobrimos que temos de escolher aquilo que antes havíamos desprezado. Há uma imensa fome de verdade a gritar sem ruído, uma vontade grande de não mais ter medo, o reconhecimento de que é preciso baixar a fronte e pedir ajuda. E perguntar o caminho.
Ficamos a saber que pouco se aproveita de tudo o que fizemos, de tudo o que nos deram, de tudo o que conseguimos. E há um poema, que devíamos ter dito e não dissemos, a morder a recordação dos nossos gestos. As mãos, vazias, tristemente caídas ao longo do corpo. Mãos talvez sujas. Sujas talvez de dores alheias.
E o fundo de nós vomita para diante do nosso olhar aquelas coisas que fizemos e tínhamos tentado esquecer. São, algumas delas, figuras monstruosas, muito negras, que se agitam numa dança animalesca. Não as queremos, mas estão cá dentro. São obra nossa.
Detestarmo-nos a nós mesmos é bastante mais fácil do que parece, mas sabemos que também isso é um ponto da viagem e que não nos podemos deter aí.
Agora o tempo que nos resta deve ser povoado de espingardas. Lutar contra nós mesmos era o que devíamos ter aprendido desde o início. Todo o tempo deve ser agora de coragem. De combate. Os nossos direitos, o conforto e a segurança? Deixem-nos rir... Já não caímos nisso! Doravante o tempo é de buscar deveres dos bons. De complicar a vida. De dar até que comece a doer-nos.
E, depois, continuar até que doa mais. Até que doa tudo. Não queremos perder nem mais uma gota de alegria, nem mais um fio de sol na alma, nem mais um instante do tempo que nos resta."
Paulo Geraldo , escritor
vida frágil... bela, majestosa , poderosa... mas frágil... à mercê de um sopro do vento... de uma onda do mar... de um abraço da terra...
vida intensa, valiosa... que nos permite tudo, que só por meio dela podemos alguma coisa...
que é a nossa força, o nosso alento, o nosso recomeçar a cada dia... o nosso projecto, em que tudo investimos desde o segundo em que nascemos, desde o primeiro respirar...
projecto grandioso, dispendioso, pelo qual sofremos muitas vezes, mas que é o único que nos permite também sorrir, ser feliz...
por isso se torna tão difícil quando esse projecto que é a vida de cada um, é abalado por um qualquer fenómeno... acontecimento... ou problema... é difícil ver e aceitar que esse projecto a que tudo damos possa ser posto em causa... ou mesmo em risco...
e quando isso acontece logo surgem a frustração, o desânimo, a tristeza... sentimos impossível a nossa realização pessoal... a valorização do nosso projecto...
é necessária prudência mas também um pouco de extravagância na elaboração do grande projecto que é a vida... é necessário ter consciência de que há uma aura de fragilidade a pairar sobre tudo o que nos rodeia, que por mais que pareça que está tudo bem, devemos ter consciência que no momento seguinte pode ficar tudo mal... é certo que não devemos deixar de viver a vida e continuar a investir nela ao máximo a cada segundo, mas não podemos esquecer que tudo o que nela pode ser fortaleza tem também o seu lado de fraqueza... que quanto mais intenso for o momento, e mais alto e nobre o sentimento, também maior será o sofrimento...
assim, sem medo, mas com respeito, devemos viver cada dia ao máximo... e ao máximo significa aproveitar cada toque dessa vida que nos impele, não fazendo tudo o que nos aparece pela frente impulsivamente, mas sim deliciar cada passo, cada caminho, metro por metro, e cada meta atingida, para que quando o vento soprar, uma onda se formar, ou a terra abraçar, possamos mesmo assim sorrir, por sabermos que não deixámos escapar um degrau de escada ou um milímetro de estrada que fosse, porque soubemos acompanhar a vida quando ela estava no seu auge.
Sei que estás comigo.
Estás no meu coração, e sei que estou no teu.
Não morreste... apenas o teu corpo deixou de existir.
Tu estarás para sempre vivo – na memória daqueles a quem provocaste um olhar de admiração, e no coração daqueles para quem, por qualquer motivo, te tornaste especial.
És o maior orgulho que tenho e alegra-me saber que isso ninguém pode tirar de mim.
A saudade é grande, e cresce mais a cada dia que passa... mas a lembrança do sorriso que conseguias mostrar mesmo nos piores momentos, dá-me força para sorrir também, e para viver cada dia com a certeza de que voltaremos a encontrar-nos...
Para ti Papá.
11 de Maio de 2005
Atrevo-me a escrever que talvez perceba uma das reflexões a que se referia essa grande alma criadora...
Realmente ao longo da vida vamos dividindo a nossa alma em várias... criamos uma alma para cada contexto que habitamos... e vamo-nos repartindo.
Chegamos a um ponto em que já não sabemos mais onde pertencemos... queremos assumir cada parte da alma que temos, mas é difícil...
Uma alma tão repartida acaba por se desintegrar, e acabamos por ficar perdidos por entre os mil caminhos que traçamos...
E com tantos mundos para viver acabamos por não viver.
Queremos habitá-los todos, se possível ao mesmo tempo... mas eles entram em confronto e alguns contradizem-se... e não conseguimos habitar nenhum...
E nesse emaranhado de caminhos, de viveres, de emoções, vai crescendo um vazio... um vazio que se torna tanto maior quanto a vontade de querer viver em todos os lugares... e acabamos por não viver verdadeiramente em nenhum...
De tão intensamente que queremos viver, torna-se superficial a nossa existência...
De tanta vontade que temos em deixar a nossa marca, acabamos por perder os melhores momentos... Porque corremos, não paramos de andar de um lado para o outro, de querer fazer e viver tudo e sempre...
E acabamos mesmo por não fazer nada, por não viver nada...
A única coisa que se vai acentuando é o vazio – um vazio cá dentro que tanto ansiou a intensidade que lhe permitiu passar dos limites...
Não há retorno, apenas solidão... E agora tudo depende do que fizermos para ultrapassá-la ou para conseguir viver com ela...
E chega-se à derradeira conclusão de que é quando pensamos ter tudo, fazer tudo, conseguir tudo...
É precisamente aí que não temos nada...
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.